domingo, 25 de maio de 2014

ATÉ ONTEM UM CEGO NÃO PODIA SER JUIZ NO BRASIL

Fernando Gaburri

Diretor Nacional do Núcleo de Estudos dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP; Conselheiro presidente do Conselho Municipal dos Direito  da Pessoa com Deficiência de Natal – COMUDE; Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP e doutorando em Direitos Humanos pela USP; Procurador do Município de Natal Chefe da Procuradoria de Assistência Jurídica ao Cidadão; professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN – e do Centro Universitário do Rio Grande do Norte – Uni-RN.


Historicamente se constata que inúmeros candidatos com cegueira tiveram suas inscrições indeferidas, sendo obstados de prestar as provas de concursos para ingresso na Magistratura.
  No ano de 2008, o Estado do Maranhão abriu Concurso Público para provimento do cargo de juiz de direito substituto de entrância inicial. O Edital n 02/2008 do referido Concurso, em estrita consonância com o art. 37, VIII, da Constituição Federal, com a Lei n. 7.853 de 1989 e com a Lei n. 8.112 de 1990, previu reserva de vagas para pessoas com deficiência. Curiosamente, no item 6.1.2 do Edital de abertura do certame, vedou qualquer pedido de provas em braile, leitura de prova, letra ampliada, “utilização de ledor ou outros softwares. Como se percebe, o edital, de maneira nítida, inviabilizou a participação de pessoas com deficiência visual naquele certame.
Em razão daquela postura desarrazoada e discriminatória, a Seccional do Maranhão da Ordem dos Advogados do Brasil impetrou Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça local, autuado sob o n. 027235/2008, sob fundamento de violação de direito líquido e certo à participação no certame dos candidatos com deficiência visual.
A liminar em Mandado de Segurança fora deferida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, que suspendeu o Concurso Público até que fosse afastada a conduta discriminatória prevista no edital de abertura, que inviabilizava a participação de candidatos com deficiência visual.
Mas o Tribunal de Justiça local requereu, no Supremo Tribunal Federal, a suspensão da decisão liminar concessiva da segurança (SS 3.692-1/MA), alegando que o exercício da magistratura é incompatível com pessoas com deficiência visual, além do que haveria uma grande carência de magistrados naquele estado, que seria em parte suprida com os aprovados no referido concurso público, pelo que a suspensão de seu transcurso seria prejudicial ao interesse público. 
O Ministro Gilmar Mendes, apreciando o feito, deferiu o pedido de suspensão de segurança, lastreando sua decisão na  carência de magistrados no Estado do Maranhão;  no Enunciado Administrativo n. 12 do Conselho Nacional de Justiça, que condiciona o preenchimento das vagas reservadas à compatibilidade entre as funções a serem desempenhadas e a deficiência do candidato; e no que ficou decidido pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 100.001/DF , sob relatoria do Ministro Moreira Alves, julgado em 29.03.1984.

Primeiramente, o Ministro violou o princípio da primazia dos direitos humanos (na dúvida em prol dos direitos humanos) ao suspender a segurança, determinando o prosseguimento do certame com exclusão do candidato com deficiência visual, quando poderia ter determinado o prosseguimento, com sua participação até que o Mandado de Segurança fosse julgado por decisão final. Neste caso, não estaria prejudicado o Estado do Maranhão, carente de magistrados, pois o certame chegaria ao seu desfecho, apenas com a pendência de se resolver uma questão pontual do candidato com deficiência visual, acaso aprovado fosse.
Em segundo lugar, o acórdão invocado como precedente data de 1984, quando vigia a Constituição militar do Brasil, aprovada em período que causa vergonha e asco à grande maioria da população brasileira.
Por fim, o texto da Emenda Constitucional n. 12 de 1979 e as demais disposições da Constituição militar não poderiam ter sido utilizados como precedentes em 2008, momento em que já estava vigente, com status de norma formalmente constitucional, o texto da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Essa realidade foi amargada por inúmeros candidatos, dentre eles o Senhor Ricardo Tadeu Marques da Fonseca que, ao ser impedido de prestar concurso para a Magistratura trabalhista, optou por ingressar no Ministério Público do Trabalho. Este tornou-se o primeiro Magistrado cego da história do Brasil, ao ser nomeado Desembargador do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, ocupando vaga destinada ao Ministério Público do Trabalho.
A partir de então, o exercício da Magistratura por um juiz cego deixa de ser novidade no Brasil.
No dia 21.02.2013, pela primeira vez na história do Brasil, uma pessoa com deficiência visual - o Senhor Alessandro Camara de Souza, atua como jurado no Tribunal do Júri. Trata-se do processo penal autuado sob n. 0057557-17.2012.8.19.0002, que tramita perante a justiça criminal da Comarca de  Niterói/RJ, que resultou na condenação do réu na pena de cinco anos de detenção, em regime semiaberto, por tentativa de homicídio.
Segundo o juiz Peterson Barroso Simão, que presidiu o julgamento, não há expresso impedimento legal para que uma pessoa com deficiência sirva no tribunal do júri na função de jurado, nem houve impugnação das partes. Segundo o magistrado:

A atuação foi de alto nível de responsabilidade e equilíbrio. E, apesar de não poder ver, ele superou a deficiência com muita sensibilidade. Além do mais, pessoas com deficiência devem participar ativamente das atividades sociais e respectivos deveres, tendo sua dignidade, autonomia e liberdade de fazer suas próprias escolhas respeitadas. Posicionamento contrário encontra-se na contramão dos novos tempos. (Notícia disponível em M <www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/116305>. Acesso em 26.02.2013.)

No XVII concurso para a magistratura federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, realizado em julho de 2013 e concluído em abril de 2014, o Edital de convocação previu, no item 7.1 de seu Capítulo IV, a participação de candidato cego no certame, nos termos seguintes:

“7.1 Aos deficientes visuais (cegos) que solicitarem prova especial em Braile, serão oferecidas provas nesse sistema e suas respostas deverão ser transcritas também em Braile. Os referidos candidatos deverão levar para esse fim, no dia da aplicação da prova, reglete e punção podendo, ainda, utilizar-se de soroban.”

Nesse concurso, foi aprovado um candidato cego, o Senhor Ed Lyra Leal, que hoje é o primeiro juiz concursado do Brasil. Isso demonstra que razão não assistia aos órgãos do Poder Judiciário que outrora vedavam a inscrição e participação de candidatos cegos nos concursos para ingresso na magistratura. Aqui se vislumbra a viabilização de uma justiça de transição, em que medidas estruturais vêm sendo postas em prática, em salutar substituição às medidas compensatórias.