Fernando
Gaburri
Diretor
Nacional do Núcleo de Estudos dos Direitos da Pessoa com Deficiência do
Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP; Conselheiro presidente do
Conselho Municipal dos Direito da Pessoa
com Deficiência de Natal – COMUDE; Mestre em Direito Civil Comparado pela
PUC/SP e doutorando em Direitos Humanos pela USP; Procurador do Município de
Natal Chefe da Procuradoria de Assistência Jurídica ao Cidadão; professor da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN – e do Centro
Universitário do Rio Grande do Norte – Uni-RN.
Historicamente se
constata que inúmeros candidatos com cegueira tiveram suas inscrições
indeferidas, sendo obstados de prestar as provas de concursos para ingresso na
Magistratura.
No ano de 2008, o Estado do Maranhão abriu
Concurso Público para provimento do cargo de juiz de direito substituto de
entrância inicial. O Edital n 02/2008 do referido Concurso, em estrita
consonância com o art. 37, VIII, da Constituição Federal, com a Lei n. 7.853 de
1989 e com a Lei n. 8.112 de 1990, previu reserva de vagas para pessoas com
deficiência. Curiosamente, no item 6.1.2 do Edital de abertura do certame,
vedou qualquer pedido de provas em braile, leitura de prova, letra ampliada,
“utilização de ledor ou outros softwares. Como se percebe, o edital, de maneira
nítida, inviabilizou a participação de pessoas com deficiência visual naquele
certame.
Em razão daquela
postura desarrazoada e discriminatória, a Seccional do Maranhão da Ordem dos
Advogados do Brasil impetrou Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça local,
autuado sob o n. 027235/2008, sob fundamento de violação de direito líquido e
certo à participação no certame dos candidatos com deficiência visual.
A liminar em Mandado de
Segurança fora deferida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão, que suspendeu o
Concurso Público até que fosse afastada a conduta discriminatória prevista no
edital de abertura, que inviabilizava a participação de candidatos com
deficiência visual.
Mas o Tribunal de
Justiça local requereu, no Supremo Tribunal Federal, a suspensão da decisão
liminar concessiva da segurança (SS 3.692-1/MA), alegando que o exercício da
magistratura é incompatível com pessoas com deficiência visual, além do que
haveria uma grande carência de magistrados naquele estado, que seria em parte
suprida com os aprovados no referido concurso público, pelo que a suspensão de
seu transcurso seria prejudicial ao interesse público.
O Ministro Gilmar
Mendes, apreciando o feito, deferiu o pedido de suspensão de segurança,
lastreando sua decisão na carência de
magistrados no Estado do Maranhão; no
Enunciado Administrativo n. 12 do Conselho Nacional de Justiça, que condiciona
o preenchimento das vagas reservadas à compatibilidade entre as funções a serem
desempenhadas e a deficiência do candidato; e no que ficou decidido pelo
Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.
100.001/DF , sob relatoria do Ministro Moreira Alves, julgado em 29.03.1984.
Primeiramente, o
Ministro violou o princípio da primazia dos direitos humanos (na dúvida em prol
dos direitos humanos) ao suspender a segurança, determinando o prosseguimento
do certame com exclusão do candidato com deficiência visual, quando poderia ter
determinado o prosseguimento, com sua participação até que o Mandado de
Segurança fosse julgado por decisão final. Neste caso, não estaria prejudicado
o Estado do Maranhão, carente de magistrados, pois o certame chegaria ao seu
desfecho, apenas com a pendência de se resolver uma questão pontual do
candidato com deficiência visual, acaso aprovado fosse.
Em segundo lugar, o
acórdão invocado como precedente data de 1984, quando vigia a Constituição
militar do Brasil, aprovada em período que causa vergonha e asco à grande
maioria da população brasileira.
Por fim, o texto da
Emenda Constitucional n. 12 de 1979 e as demais disposições da Constituição
militar não poderiam ter sido utilizados como precedentes em 2008, momento em
que já estava vigente, com status de norma formalmente constitucional, o texto
da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
Essa realidade foi
amargada por inúmeros candidatos, dentre eles o Senhor Ricardo Tadeu Marques
da Fonseca que, ao ser impedido de prestar concurso para a Magistratura
trabalhista, optou por ingressar no Ministério Público do Trabalho. Este
tornou-se o primeiro Magistrado cego da história do Brasil, ao ser nomeado
Desembargador do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região,
ocupando vaga destinada ao Ministério Público do Trabalho.
A partir de então, o
exercício da Magistratura por um juiz cego deixa de ser novidade no Brasil.
No dia 21.02.2013, pela
primeira vez na história do Brasil, uma pessoa com deficiência visual - o
Senhor Alessandro Camara de Souza, atua como jurado no Tribunal do Júri.
Trata-se do processo penal autuado sob n. 0057557-17.2012.8.19.0002, que
tramita perante a justiça criminal da Comarca de Niterói/RJ, que resultou na condenação do réu
na pena de cinco anos de detenção, em regime semiaberto, por tentativa de
homicídio.
Segundo o juiz Peterson
Barroso Simão, que presidiu o julgamento, não há expresso impedimento legal
para que uma pessoa com deficiência sirva no tribunal do júri na função de
jurado, nem houve impugnação das partes. Segundo o magistrado:
A
atuação foi de alto nível de responsabilidade e equilíbrio. E, apesar de não
poder ver, ele superou a deficiência com muita sensibilidade. Além do mais,
pessoas com deficiência devem participar ativamente das atividades sociais e
respectivos deveres, tendo sua dignidade, autonomia e liberdade de fazer suas
próprias escolhas respeitadas. Posicionamento contrário encontra-se na
contramão dos novos tempos. (Notícia disponível em M
<www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/116305>. Acesso em
26.02.2013.)
No
XVII concurso para a magistratura federal do Tribunal Regional Federal da 3ª
Região, realizado em julho de 2013 e concluído em abril de 2014, o Edital de
convocação previu, no item 7.1 de seu Capítulo IV, a participação de candidato
cego no certame, nos termos seguintes:
“7.1 Aos deficientes visuais (cegos) que
solicitarem prova especial em Braile, serão oferecidas provas nesse sistema e
suas respostas deverão ser transcritas também em Braile. Os referidos candidatos
deverão levar para esse fim, no dia da aplicação da prova, reglete e punção
podendo, ainda, utilizar-se de soroban.”
Nesse concurso, foi aprovado um candidato cego,
o Senhor Ed Lyra Leal, que hoje é o primeiro juiz concursado do Brasil. Isso demonstra que razão não assistia aos
órgãos do Poder Judiciário que outrora vedavam a inscrição e participação de
candidatos cegos nos concursos para ingresso na magistratura. Aqui se vislumbra a viabilização de uma justiça
de transição, em que medidas estruturais vêm sendo postas em prática, em
salutar substituição às medidas compensatórias.
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